Trouxeste a chave?

Eu tinha um fascínio indescritível por gavetas. Tinha não, tenho. Por gavetas e por caixinhas. E
por caixinhas dentro de caixinhas dentro de caixinhas. Eu gostava de abrir e mexer em todas as
caixinhas que eu pudesse; e não que eu esperasse encontrar algo. Na realidade, não encontrar
era ainda mais divertido, porque se transformava em uma nova desculpa para abrir de novo e
conferir se, no instante mágico em que eu fechasse, algo tivesse surgido ali dentro.
Eu conservava meu prazer colecionando caixinhas.
Guardava-as pelo meu quarto todo, em todos
os cômodos, para, ocasionalmente, tirar uma tarde de prazer revirando-as e mudando as
posições e as funções: agora esta guarda esse broche, e esta aqui guarda as figurinhas dos
cavaleiros-do-zodíaco – meus tesouros mais preciosos.
Eu gostava da caixinha alheia também.
Se não fosse a minha mãe e o meu pai ensinarem o limite da privacidade do outro, eu estaria
até hoje abrindo gavetas de desconhecidos e pedindo para mexer nas suas caixinhas. Reitero:
não porque eu desejo a posse do conteúdo, mas a posse do conhecimento desse conteúdo. Que
delícia é saber um segredo, meu deus. Quanto prazer eu posso esconder, escondendo?
Sigo guardando e colecionando caixinhas até hoje. Já me constrangi por, em alguns casos, ficar
tão encantada com a caixa que desprezei o presente que vinha dentro, deixando a pessoa que
ofereceu confusa sobre: 1, se tinha acertado no presente; 2, se eu estava mentalmente sã. Meu
pai sempre me dá caixinhas, seja qual for a origem delas.
É por isso que toda vez que me emociono com alguém, ou me apaixono, ou me sinto comovida
de alguma maneira, tenho vontade de guardar a pessoa que me causa isso em uma caixinha.
Essa expressão, que é muito recorrente para se referir às coisas e pessoas que geram empatia e
fofura, é a maior prova de amor que eu dedico a alguém: fazer parte da minha caixinha é fazer
parte do que há de mais prazeroso para mim. É porque eu quero achar essa pessoa no meu
momento feliz de abrir a gaveta e tirar a caixinha.
Aliás, é preciso dizer: não esvazie as caixinhas em cima da cama. E se o fizer: guarde
demoradamente. E não decore onde colocou as coisas: se não, quando vai ter o prazer de
procurar?
Enfim, nem toda criança gosta de caixinha, tudo bem.
Nem toda criança gosta de ler - o que não
é tão bem assim, mas a gente ensina – mas eu chuto que a criança que gosta de caixinha e a
criança que gostam de ler tendem a ser as mesmas. Porque há um quê de caixinha em todos os
livros. Eles sempre estão esperando que a gente abra: e fuce, e mexa, e fuce mais um pouco. E
talvez não ache nada, para reabri-lo e reler e, num instante de mágica aquilo que sempre foi
sonhado se realize: um tesouro pode estar ali dentro.
ps: caixinhas e livros não podem ser fáceis demais de abrir. Nem impossíveis. É preciso uma
resistência da chave. Trouxeste a chave?
Esse texto tinha sido publicado há anos, num blog que não existe mais. A vida e sua beleza me trouxe ele de volta e eu quis dividir com vocês.
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