O que é ruim pra você?

Sendo didática e pouco científica, podemos dizer que
normativa é o nome que damos à gramática que prescreve regras (normas) para o
uso da língua. Como tudo que prescreve regras, a gramática normativa cria padrões.
Antes que você ache que eu encarnei a professora louca de
português, eu me justifico: a gramática normativa, e seus inúmeros padrões,
ainda é a que estudamos na escola e sobre a qual se embasam os textos ditos
científicos. E o parâmetro que permite que o desvio (variantes) possam sofrer preconceito linguístico – quando
rejeitamos, desprezamos, etc, uma pessoa pelo modo como ela fala.
A gramática normativa é um dos padrões que existem no mundo.
Não é o único, nem o mais cruel. A moda (aqui, também, em termos gerais) é uma
norma. Ela também estabelece e, por vezes, exclui e violenta uma parcela
considerável que não fala igual àquela
linguagem. Porque a moda é, efetivamente e acima de tudo, linguagem: uma
intenção comunicativa: passamos
diferentes mensagens com as nossas roupas.
Acontece que em um mundo violento como o nosso, em que a
cristalização de paradigmas é a maior arma dos poderosos, falar diferente é um
problema muito sério. Ninguém está preparado para as diferenças quando cresce
rejeitando-as. E temos sido educados a não se destacar pelo contraste jamais.
O Brasil tem destaque no mundo todo por ter difundido a
“escova brasileira”, isto é, o alisamento definitivo. Violentamos crianças que
tem o cabelo crespo, afro ou cacheado diariamente
atribuindo a eles o adjetivo ruim.
Essa é a Danielle
Lima. Uma das minhas melhores amigas. Olha pra mim e me diz: esse cabelo parece
ruim?
Poucos modalizadores são tão esvaziados de sentido. Afinal,
o que é ruim pra você?
E por ser ousada demais e um pouco atrevida, eu já te
respondo: ruim é o que é diferente. A
mensagem que você não esperava ouvir.
Num país como nosso, meu senhor, o cabelo não é ruim porque
ele cresce para os lados. O cabelo não é ruim porque prende diferente. O cabelo
não é ruim porque não dá para pentear seco. Num país de herança escravocrata,
um cabelo ruim é porque é associado a um passado absolutamente vil. O cabelo
ruim é hierárquico.
Ruim é seu senso
estético, se não sabe ver bela aqui. Gabriela Feliciano, aluna, amiga e musa
inspiradora.
Não para por aí. Quando falamos de herança escravocrata,
inúmeros (e incontáveis) são os casos em que os adjetivos saem do campo da
caracterização e vão para o da violência.
Ela é
morena/mulata/escura, mas é bonita. Tem traços finos.
Fino é o contrário de grosso, meu senhor. Traços finos
remetem a uma clara hierarquia: o que é fino, é delicado, é sutil, é tolerável
e prazeroso. O grosseiro não.
Carolina Mota: amiga,
diva e minha professora de pilates. Não é linda porque tem traços finos, não.
Eu não sei o que são traços finos. Ela é linda porque é. Os créditos da foto
são do Caio Sanfelice.
Estou aqui massacrando os pobres dos adjetivos, mas eles não
são os únicos joguetes do mal nesse samba louco da gramática. Pobrezinha da
preposição até, que é jogada no campo dos advérbios para produzir orações do
tipo "Ela é até bonita para uma gorda."
Bonita, feia, linda, legal, gostosa: modalizadores que
dependem de um acervo cultural. Prazer estético mobiliza experiência, não pode
ser ÚNICO. É como se você dissesse "Esse café é até
gostoso para um grão."
Ser bonita independe de ser gorda/magra. Ser gostoso
independe de ser grão/oleaginosa.
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Angie Stone (foto de Kevin Goolsby - Fonte) |
Sério que é ATÉ
bonita?
Enfim, a linguagem é como um martelo: pode ser ferramenta
útil e válida para pregar um prédio na parede, mas facilmente vira uma arma
propagadora de violência.
Eduque sua linguagem. Eduque seu olhar: você tem certeza que
você o que você quer ou o que querem que você veja?
Marcella Rosa é formada em Letras, mestre em Crítica Literária e, porque não tem juízo, cursa atualmente graduação em filosofia e doutorado em História da Literatura. Gosta de gente, de qualquer forma, por isso, é apaixonada pela sala de aula e por escrever sobre pessoas. Não gosta de biografias em terceira pessoa, mas faz. Gosta de livros, mas não faz. Prefere sempre a troca: de figurinha, de fluidos ou de experiência.
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Somos Marcella Rosa e Marina Sena, parceiras no blog, na luta e na vontade de mudar - nem que seja um pouquinho - o mundo. O Maggníficas é um pouco de nós, porque aqui tem moda democrática, empoderamento feminino e amor próprio. Nosso foco é a sororidade e a vivência plena de todos os corpos, porque acreditamos que somos todas maggníficas e que todo mundo pode tudo!
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